Você imaginaria se alimentando de sangue? Num primeiro momento, pode ser que isso cause uma certa estranheza e até repúdio, mas saiba que o sangue sempre esteve presente na nossa alimentação. Muitas culturas consomem sangue como alimento, muitas vezes em combinação com carne.
Ao se observar a História da Alimentação, os indivíduos de um mesmo grupo social sempre procuraram manter hábitos e costumes que acabaram se tornando intrínsecos e naturais ao cotidiano deles, ou seja, tornaram-se práticas culturais. Como já falei em outro texto, a comida também é patrimônio, onde, os hábitos alimentares são definidos principalmente por conjunto de regras sociais. Regras estas que influenciam na seleção, no consumo e na interdição de certos alimentos e que envolvem critérios para a sua preparação e ritual para seu consumo o que evidencia o seu caráter simbólico.
O Sangue na Alimentação
Embora algumas culturas considerem o sangue como uma forma de tabu alimentar, muitos povos têm utilizado esse ingrediente em suas receitas. No continente africano, por exemplo, entre o povo masai, beber sangue de gado bovino faz parte da dieta tradicional desse grupo, principalmente após ocasiões especiais como o ritual de circuncisão ou o nascimento de uma criança.
Já na Ásia, o sangue é bem mais natural na alimentação, aparecendo em diversas receitas tradicionais. Na China, Tailândia e Vietnã, o sangue coalhado de aves é conhecido por “tofu de sangue“, sendo utilizado em sopas. Na Tailândia consome-se, ainda, um caldo picante enriquecido com sangue cru de vaca ou porco, frequentemente usado para enriquecer pratos simples, como um molho para massas. Em Taiwan, um receita bem popular é a torta de sangue de porco. Feita de sangue de porco e arroz glutinoso, a receita é frita ou cozida a vapor. Na Coreia as pessoas consomem o Haejangguk, uma sopa de sangue coagulado junto com uma espécie de salsicha de sangue.
Os povos europeus também mantêm uma estreita aproximação com o sangue. Um dos pratos mais conhecidos é a morcela, amplamente popular em toda a Europa. A morcela, ou chouriço, é uma espécia de salsicha feita com carne bovina ou suína mais sangue. Outros exemplos de receitas que levam sangue na Europa são:
- blood pudding, uma espécie de pudim de sangue misturado com cereais
- svartsopa, feita com sangue de ganso
- blodplättar, panquecas de sangue
- blodpalt, bolinho de batata aromatizados com sangue de rena ou de porco
- paltbröd, pão com sangue
- schwarzsauer, sopa de sangue com especiarias, conhecido por pudim ou sopa negra
- cabidela, prato português que consiste em cozinhar a ave ou o coelho no seu próprio sangue
- sangre encebollada é um guisado popular feito com sangue de porco ou frango solidificado e cebola
Muitas outras receitas europeias podem ser incluídas nessa lista de receitas que levam o sangue como ingrediente. Os produtos alimentares, bem como os objetos e conhecimentos usados na produção, transformação e consumo de alimentos, têm sido identificados como objetos culturais portadores da história e da identidade de um grupo social.
Schwarzsauer, a sopa preta
Um dos hábitos trazidos pelos imigrantes alemães para o Brasil, é o Schwarzsauer. O Schwarzsauer foi um prato típico, muito conhecido e comum no norte da Alemanha, na mesa dos menos abastecidos, durante as guerras e períodos pós guerras.
É um tradicional prato da culinária do norte da Alemanha, pertencente a Prússia Oriental, feitos de miúdos de aves e sangue de porco. O nome Schwarzsauer é originado a partir do sangue de porco, que após adicionado ao vinagre, coalha, criando um tipo de queijo preto. Os temperos usados na Alemanha, são geralmente: pimenta, cravo, cebola e um pouco de açúcar. Na própria Alemanha, esta tradição quase não existe mais. Em Hamburg, Mecklenburg e Schleswig-Holstein geralmente, Schwarzsauer era preparado no dia do abate dos animais. Geralmente antes de ser feitas linguiças. Podemos dizer que o Schwarzsauer deu origem as morcilhas e queijos que conhecemos atualmente – feitas a partir do sangue e miúdos, partir do mesmo princípio. (WITTMANN, 2013)
A sopa preta era um prato comum servido em ocasiões especiais, como por exemplo, um jantar que antecedia o dia do casamento dos imigrantes. Geralmente as festas de casamento ocorriam nos sábados e era comum durante toda a semana a comunidade auxiliar os noivos e seus familiares com os preparativos. Como forma de confraternização, na sexta-feira à noite, véspera do casamento, fazia-se a festa de “Quebra Caco”, onde o prato principal era o Schwarzsauer, a sopa de sangue. (WITTMANN, 2013)
Bolinho de Sangue
Como vimos, muitos são os povos que utilizam o sangue como ingrediente no preparo de suas receitas tradicionais. O sangue é, portanto, um alimento amplamente difundido pelo mundo e se constitui em um ingrediente que tem se identificado enquanto objeto e prática cultural alimentar, portador de história e de identidade de grupos sociais.
Uma receita que fez parte da minha infância, mais do meu imaginário do que da minha dieta, é o bolinho de sangue. Talvez porque já naquela época se considerasse um tabu ou por ser quase uma receita esquecida, mas não totalmente perdida. E o bolinho de sangue vai muito além da simples iguaria à base desse ingrediente. Tem a ver com comensalidade, com o hábito dos almoços em família e da farta mesa aos domingos. O preparo do almoço do domingo já se iniciava aos sábados à tarde, quando se abatiam as galinhas.
No momento do abate da ave, o sangue era drenado e posteriormente coagulado com a adição de vinagre e especiarias; depois, era frito. Tal como a Schwarzsauer, que era a sopa servida de véspera, o bolinho de sangue também tinha essa característica, visto que, geralmente era consumido nos jantares de sábado.
Nesse sentido, a comensalidade passa a ser uma forma de sociabilidade, onde, por meio da alimentação podemos estabelecer um rede de relações sociais específicas, oriundas do momento em que a alimentação se liga ao prazer de cozinhar e de trocar ideias sobre a comida. Afinal, é normalmente em torno de pratos elaborados e mesa farta que se configura o ritual da comensalidade.
Antes que se deem por totalmente perdidas as receitas tradicionais, precisamos entender que a alimentação humana é muito mais do que um fato biológico, mas um ato social e cultural. O ato de comer implica representações simbólicas decorrentes da rede de relações sociais que identificam o alimento a uma determinada sociedade ou a algum segmento dela. O alimento se constitui em um produto cultural, pois é por meio do alimento e da alimentação que o homem se revela e revela seu grupo social.
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Referências:
- BAUER. Jonei. Plano Municipal de Cultura. Tríscele, 2018.
- DEMETERCO, Solange Menezes da Silva. Doces lembranças: cadernos de receitas e comensalidade: Curitiba: 1900-1950. 1998.
- REINHARDT, Juliana Cristina. Alemães, comida e identidade: uma tese ilustrada. Máquina de Escrever, 2014.
- KUCHEN (CUCA) – UM BOLO ALEMÃO?
- WITTMANN, Angelina. “Quebra Caco” – Schwarzsauer. 2013