Você já parou para pensar que entre os indivíduos que formam o nosso grupo social existem hábitos e costumes que acabam se tornando intrínsecos e naturais ao nosso cotidiano, ou seja, tornam-se um padrão? Um desses padrões que geralmente não nos damos conta é a comida, onde, os hábitos alimentares são definidos principalmente por conjunto de regras sociais. Regras estas que influenciam na seleção, no consumo e na interdição de certos alimentos e que envolvem critérios para a sua preparação e ritual para seu consumo o que evidencia o seu caráter simbólico.
A comida sempre esteve ligada ao modus vivendi do homem. As dádivas sob forma de comida sempre tiveram um papel importante nas sociedades tradicionais para estabelecer e reforçar os laços de solidariedade entre os indivíduos de uma mesma sociedade. Quando pensamos em momentos rituais ou cerimoniais o alimento é um elemento fixador psicológico do plano emocional e comer certos pratos é ligar-se ao local ou a quem o preparou.
Para o Ocidente, as datas cristãs, por exemplo, são naturalmente associadas com algumas práticas culturais alimentares, como as ceias natalinas, onde receitas tradicionais como o peru e o panetone já fazem parte do cardápio. Na Páscoa, o hábito de se comer peixe é mais um exemplo de uma prática cultural naturalmente estabelecida.
Em algumas sociedades, o aspecto gastronômico torna-se preponderante, especialmente quando o objetivo é atrair amigos, parentes, clientes. A convivência à mesa é quase sempre um sinal de proximidade, confiança e fraternidade. Nesse sentido, a comensalidade passa a ser uma forma de sociabilidade, onde, por meio da alimentação podemos estabelecer um rede de relações sociais específicas, oriundas do momento em que a alimentação se liga ao prazer de cozinhar e de trocar ideias sobre a comida. Afinal, é normalmente em torno de pratos elaborados e mesa farta que se configura o ritual da comensalidade.
A Cozinha Alemã: Receitas e Memórias Gastronômicas
A convivência à mesa é quase sempre um sinal de proximidade, confiança e fraternidade. Quando recordamos as nossas próprias memórias, geralmente lembramos dos almoços em família, da mesa farta, cheia de “receitas de vó”. Algumas comidas estão enraizadas dentro de nós, identificando e sendo identificadas e, em relação ao grupo de alemães não é diferente.
Uma das receitas nominadamente mais típicas da culinária alemã é a Kuchen, ou cuca. Trata-se de um bolo coberto por uma farofa crocante, à base de manteiga e que está naturalmente enraizada na memória de todos, atribuindo-lhe um lócus privilegiado entre as memórias gastronômicas alimentares da cultura alemã.
É importante observar que, a Kuchen é uma uma invenção na culinária alemã. Trata-se, portanto, da invenção de uma tradição, uma vez que, originalmente a receita pode ter sua origem na Alemanha, mas o bolo se tornou típico entre os imigrantes, aqui no Brasil. Isso evidenciaria as diversas variações da receita, onde se incorporaram produtos que na Alemanha não existiam. A Bananenkuchen (cuca de banana) é um bom exemplo, assim como a ErdbeereKuchen (cuca de morango).
A tradição é afirmada pela sociedade quando ela reconhece um produto com algo característico de um determinado grupo étnico. É o que ocorreu com a Kuchen. Originária ou não da Alemanha, é sem dúvida alguma o bolo mais autêntico e genuíno das cidades que tiveram seus primeiros habitantes vindos daquele país. Mais importante do que a discussão se a Kuchen seria ou não uma receita alemã autêntica ou inventada, deve-se entender que é uma receita simbólica entre um grupo social, constituindo-se em um fator de identificação cultural e, portanto, carece de registros para que não se percam os segredos do seu saber fazer (sauve faire), as particularidades com que se selecionam os ingredientes, capazes de modificar o sabor e a propriedade dos alimentos. Esses são passos importantes para o reconhecimento da Kuchen como patrimônio alimentar de um grupo social.
Kuchen: Um Patrimônio Alimentar
Os produtos alimentares, bem como os objetos e conhecimentos usados na produção, transformação e consumo de alimentos, têm sido identificados como objetos culturais portadores da história e da identidade de um grupo social.
Antes que se deem por totalmente perdidas as receitas tradicionais, precisamos entender que a alimentação humana é muito mais do que um fato biológico, mas um ato social e cultural. O ato de comer implica representações simbólicas decorrentes da rede de relações sociais que identificam o alimento a uma determinada sociedade ou a algum segmento dela. O alimento se constitui em um produto cultural, pois é por meio do alimento e da alimentação que o homem se revela e revela seu grupo social.
Desse modo, podemos destacar que a Kuchen tem sido um elo de identificação de um grupo social, difundida como receita típica entre os descendentes alemães. Independente das variações e, mais recente, as adaptações da receita original, nota-se que este bolo se faz presente em praticamente todas as cidades brasileiras que têm algum traço cultural alemão. A Kuchen está presente em festas religiosas e nas padarias, nos triviais cafés da tarde até nos sofisticados cafés coloniais. O bolo constitui-se, portanto, em patrimônio alimentar da cultura alemã no Brasil.
Mas qual a função ou o objetivo por trás disso? Por que a Kuchen deve ser considerada um patrimônio alimentar? O objetivo é estimular a população a repensar a relação com os alimentos e lutar por um sistema alimentar mais justo, equitativo, saudável, sustentável e solidário. Além disso, a ideia é valorizar a identidade alimentar, presente nas especificidades das culinárias regionais do país, bem como nas dimensões social, cultural, econômica e política da alimentação.
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Referências:
- BAUER. Jonei. Plano Municipal de Cultura. Tríscele, 2018.
- DEMETERCO, Solange Menezes da Silva. Doces lembranças: cadernos de receitas e comensalidade: Curitiba: 1900-1950. 1998.
- REINHARDT, Juliana Cristina. Alemães, comida e identidade: uma tese ilustrada. Máquina de Escrever, 2014.
- KUCHEN (CUCA) – UM BOLO ALEMÃO?